sexta-feira, 30 de maio de 2008

O abuso do absurdo

Sobre a montagem teatral de Primeiro Amor, de Samuel Beckett

Alojei-me no escuro para assistir a aquela verborragia gritada. Tomei o mesmo fôlego do ator, que surgiu do fundo da sala e dirigiu-se para o banquinho de madeira em cima do palco, único cenário na noite. A partir daí luzes fracas iniciaram o monólogo, e respirar não fazia parte daquela história. Deprimente, escatológica, lírica, divertida. Mais ou menos uma história de amor. Poderia ser de vários e de muitos, mas era a primeira, e, por uma hora e dez minutos, não pertencia a ninguém.

Marat Descartes dá voz ao texto de Samuel Beckett, utilizando-se de uma simplicidade que transborda as desventuras existenciais de seu personagem. Os cenários são lembranças, e a narração não trai em momento algum o texto original, começando em um cemitério e tendo fim com um parto, com direito a urros que molharam meu rosto de cuspe. Está ali, na sua cara, um quase não-personagem, espectador daquela realidade que ele não sabe se existe e que conta para talvez acreditar que aconteceu.

Reclusa no escuro, uma voz sem nome consegue contar sua história. Com doses deliciosas de sarcasmo, a platéia engole o vômito silábico que narra o abandono da sociedade feito por aquele homem, e seu encontro com um inclassificável tipo de amor. É aí que o brilhantismo do autor do texto encontra a genialidade dessa montagem teatral: o amor que não se classifica, narrado para os olhares do público, transforma-se em todos os amores, com todas as delícias e desilusões que se possa classificar e, principalmente, repleto das verdades nunca ditas. “O amor nos torna maus, isso é fato”, é o que eu ouvi do banco, sorrindo.

Não me cabe aqui tecer críticas, estas elogiosas ou não. Isso tudo não foi sobre uma peça que eu vi. Isso tudo foi sobre uma peça que eu vi em um maio escuro e gelado, com mais quinze desconhecidos-coadjuvantes da minha noite e com uma amizade de verdade. Foi sobre querer contar, sem colocar aquela bela descontrução em ordem. Ainda se escolhe o abuso e o absurdo. Em Primeiro Amor ainda se contam histórias, ainda há uma espécie de personagem. No início. Depois, só bocados e vozes, interrupções do silêncio.

Primeiro Amor

Texto: Samuel Beckett

Interpretação Marat Descartes (Prêmio Shell de Melhor Ator)

Direção: Georgette Fadel

Quinta - feira às 21h.

Temporada: 15 de maio a 26 de junho.

Teatro Coletivo Fábrica

4 comentários:

Vince Vinnus disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gosto mais de pão de queijo disse...

Sami, você que eu nem conheço pessoalmente já me parece muito íntima.
Quem escreve um texto assim tem a capacidade de se aproximar das pessoas mais distantes.
Adorei!

abraços,

Mirtes

Gosto mais de pão de queijo disse...

Sami, como sempre vc me emociona!
ainda mais com uma interpretação dessas que eu tive aqui!
sentirei saudades!
te amooo!

Murilo Machado disse...

O elefante já leu. Quando ele pode se juntar ao lobo?