segunda-feira, 7 de maio de 2012

Procura-se

Procura-se um leão do norte que ganhou a São Paulo e se perdeu por ela. Um super-man importado, do planeta Ceará, de juba e de bigode, que já fez sua mãe chorar enquanto ouvia o rádio e lavava a louça. Aquela figura ossuda, magra até depois de velha, que canta como se fosse o dono do mundo.

Caçar o leão é fácil. Uma vez de frente com a fera, certeiras são as pistas para o reconhecimento. Se não está cantando de braços abertos está abraçado no violão. Se este for o caso, aproxime-se lentamente, com cuidado para não tirá-lo do transe de olhos apertados e voz rasgada, sofrida, daquela que se não saísse da boca seria lágrima. Voz que se auto-proclama “taquara rachada, do soul, do blues e do pó da estrada”. Caso a fera esteja muda e em repouso, atente-se aos detalhes. Continua sendo fácil: bigode e olhos sorriem juntos. Aliás, atenção ao bigode, detalhe imprescindível. Se não for espesso e milimetricamente cultivado para esconder todo o lábio superior, com centímetros de charme sobrando para os dois lados, esqueça, é um impostor. Recomendável não comentar sobre a cor natural adquirível na farmácia, indelicado e perigoso.

Rugas no canto da boca denunciam a experiência da bochecha amarrada, face chupada de maracujá seco, de quem já viveu o doce dos anos 70 o azedo dos 80. A expressão varia entre essas caretas de quem quer gritar o que tem por dentro e os trejeitos torpes de conquistador. Às caçadoras mulheres, o aviso: a fera ainda morde.

A idade é incerta. O leão perdido em São Paulo parece ter os anos do mundo, mas é impossível mentir que não é desse país. Tem aquela aura quase insuportável de brasileiro, aquela que mistura lucidez, alegria e ausência. As suas roupas, talvez, dificultem a caçada. É a camisa, a calça e o terno de todo dia, algum mais especial do que outro, para ficar charmoso no caixote da nossa sala e na calçada da paulicéia. A fera é esperta, se esconde por absorver de tudo o que somos. Você pode achar que o viu todos os dias. Aliás, eu acho que vi Belchior hoje, aqui mesmo na minha rua, mas talvez tenha sido apenas outro rapaz latino americano.

(texto feito em algum intervalo tedioso entre 2009 e 2010)


Prelúdio do inferno astral

Discuti com aquela garota que me encarava no espelho. Não costumo passar por ali e ficar por mais de cinco minutos, é briga na certa.

Mostrei a língua para aquela menina. Preciso de um pente. Me falta um dente. No clã dos Lobo eu sou aquela que não tem um canino. Perdi na rua, pequeno acidente de motocicleta que declamo a terceiros como Ilíada, como Odisséia, como uma música do Zé Ramalho. O sorriso que ficou torto, meio puxado para a direita, merece.

Dê um pente para essa menina. Falta um canino ali, do lado esquerdo. O sorriso ficou meio de lado, ela não para de olhar para trás. Ela está me olhando por dentro. Rindo. Chorando. De boca torta. Ela fala sozinha, assopra e desenha no vidro do espelho. Contornou meus medos com vapor e a ponta dos dedos. Derrubou os olhos em mim. Mas que confusão. Mas que adorável.

Dei um sorriso para aquela menina. Declaramos trégua. Em paz até a próxima década.

Olhando pela última vez, já de soslaio, já não parece que lhe falta nada.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Da maneirista

Diz-se que se escreve para registro de sons ou para eternizar histórias. Acontece que logo após invadirmos com letras o papel branco e virgem, desvirtuamos também as primeiras puras intenções. A atitude não é má e sim natural em essência, porque a verdade é que se escreve para completar o que não foi dito. Para transformar as lacunas de silêncio de nossa história engasgada. Partindo do que se sente e não se fala, escreve-se para preencher o branco.

Neste preencher com tinta a expressão é mais livre. O gesto é como despir sem pudor de palavras o branco novo do vestido da noiva pura, e sussurrar em seu ouvido aquilo que ninguém mais podia saber antes do abuso. Dessa forma a história escrita se torna mais crua, mais humana, inesquecível como todas as primeiras vezes.

Não há segredo para a liberdade e a facilidade do ato. Não há forma mais simples de eternizar uma impressão do que começa-la do branco, sem prévias marcas nem intenções. É pressionar a caneta em oportunidades infinitas para criar as cores que quiser a partir do brilho alvo do nada. Escreve-se porque é fácil.

É preciso lembrar que escrever muda primeiras intenções, mas não foge nunca daquela primeira desejada realidade. A tinta que completa o tal branco das idéias tem apenas a missão de revelar a originalidade presa no vazio da fala e na luz do papel. Escreve-se para trazer o real e a si mesmo ao claro, e assim não passar a vida em branco.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Quote do óbvio

- Sabe a garota do copo de água?

- Sei.

- Se parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.

- Em alguém do quadro?

- Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar, e sentiu que eram parecidos.

- Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente que criar laços com os que estão presentes.

- Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.

- E ela? E a bagunça na vida dela?"

Dialogue de Amelie Poulain et monsieur Dufayel

Rouba-se toque e gosto em cada reprodução, só porque não sobra nada a acrescentar. Eis meu autêntico auto-plágio.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Pelo possível e sem medida

Transgredi, ou foram elas?

Letras que não sabem me evitar

Começa quando o fundo branco se trai e elas me olham, se entrelaçam, acariciam.

E me batem no rosto, pescoço e vertigem

Mas é claro que não dói, eu aguento. Agora sem trema. Eu tremo.

Quentes e cuspidas com direção certa. Há de ficarem em mim.

Aquelas suas letras me abusam.

Sem pudor, sem rodeio. Impulso viril, forte e rígido. – mas doce. Sempre.

domingo, 7 de setembro de 2008

Pão e tango

A massa intelectual hermana está fula da vida com as escolhas de seu governo. Tudo porque a casa rosada decidiu por celebridades como Maradona e Che Guevara para representar a Argentina na feira literária da Alemanha, deixando os ícones Julio Cortázar e Jorge Luís Borges de fora, como meros estepes do show. Um absurdo? De jeito nenhum! Acalmem-se literatos, vocês, que estão a defender mestres do 1900 tão fora de moda, não pegaram o espírito do séc XXI: é tudo uma simples questão de showbiz.

O governo foi sábio e não perdeu tempo em firmar seu brasão com substância. Para os olhos lá fora apostou logo em logotipos. Ora, temos Argentina estampada nas camisetas por todo o mundo, não percam a ternura, jamás! Vende como água, vamos vender como literatura também. Idolatria de mercado, existe melhor negócio? Afinal, o que importa se Cortázar reinventou a narrativa da desconstrução, se dieguito escreveu sobre reabilitação?

Ao povo o que o povo quer. E quem quiser conhecer Borges e Cortázar vai precisar de um empurrãozinho maior para sair do pão e circo tão ofertado, e que não vigora somente nos nossos vizinhos. Assim como aqui nas terras tupiniquins, onde colocam Bruna Surfistinha nos estands e Machado de Assis nas prateleiras de baixo, é mais do que óbvio que, no país que tem o rei portenho do futebol, ninguém vai querer saber de jogar amarelinha.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Mim

Eu vim daquela chuva ridícula que você não parava de olhar pela janela, e permaneço.

Estou aqui dentro, rindo dos seus coitos histéricos de fim de tarde.

Suor gelado, corpo trêmulo. Você não tem voz, eu te transbordo, isso me excita, ah se você soubesse. Mas eu não vou contar, eu não vou embora. Você tem suas últimas chances para sempre.

Faz-me dormir, fecha a janela, me descobre e me desperta.

Eu, vaso com cheiro de barro, e flores, e mofo, e fim.